Mundo desconhecido de insetos da Floresta Amazônica começa a ser revelado em grande estudo liderado por pesquisador da USP

Expectativa é que milhares de espécies sejam descritas, e a complexidade da floresta seja mais bem compreendida. Na imagem, um louva-a-deus, ordem Mantodea – Foto: Bernardo Ferraz/ @bio_insecta
Dois megaprojetos de pesquisa que começaram em 2024 buscam fornecer em breve a primeira estimativa confiável sobre a diversidade de espécies de insetos da Amazônia, bioma de maior biodiversidade do planeta.
Os insetos são o grupo de maior diversidade (1,1 milhão de espécies) conhecida entre todas as espécies considerando plantas, fungos e animais (cerca de 2 milhões).
A identificação das espécies é o primeiro passo de quase todo estudo biológico, mas pode ser desafiadora — e um número impressionante delas permanece sem descrição. As estimativas do número de espécies no planeta variam entre cinco até dez vezes. Acrescente a esse cenário a complexidade e tamanho da Floresta Amazônica, com seus 700 milhões de hectares e a dificuldade de se acessar os vários estratos da floresta acima do solo: em grandes regiões da Amazônia as árvores têm altura média de 30 a 35 metros.
Com a perda acelerada de espécies e ecossistemas, somada ao risco de colapso da Amazônia nas próximas décadas, em uma combinação entre desmatamento, degradação e mudança climática, acelerar os estudos de grande escala para revelar a biodiversidade é urgente para fomentar a preservação.
Professor sênior da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Dalton de Souza Amorim coordena o BioInsecta, um grande projeto temático apoiado pelo Programa Biota da Fundação de Amparo à Pesquisa o Estado de São Paulo (Fapesp) para o estudo da biodiversidade de insetos na Amazônia (2024-2028). Professor da USP desde 1990, Amorim tem mais de 130 trabalhos publicados em revistas científicas indexadas, e é referência internacional em pesquisas sobre taxonomia, evolução e biodiversidade de insetos tropicais.
No dia 30, parte da equipe embarca para mais um uma expedição para trabalho de campo, na reserva ZT-2, do Impa, nas proximidades de Manaus (AM).
Em entrevista ao Jornal da USP, que acompanhará a expedição, Amorim fala sobre o projeto que coordena e suas principais perguntas e inovações propostas, além de algumas das repercussões esperadas da pesquisa.
“Quantas espécies de insetos são impactadas quando uma área qualquer de 10 mil hectares de floresta é removida, isto é, quantas espécies de insetos existem em uma área qualquer de floresta de cerca de 10 mil campos de futebol? Sabemos que são muitas milhares, mas não sabemos quantas”, explica Amorim.
Sua expectativa é que cientistas da biodiversidade possam usar os dados gerados no projeto “para delinear novas soluções para a conservação e restauração da Amazônia”.
Acompanhe a entrevista completa:
Qual a relevância ecológica dos insetos para as florestas tropicais?
Os insetos são fundamentais na sobrevivência das florestas, mas ainda sabemos muito pouco sobre eles. Os insetos surgiram na Terra a partir de artrópodes ancestrais há mais de 410 milhões de anos. Desde então, os vários grupos que foram surgindo sobreviveram a mudanças muito grandes no planeta, incluindo glaciações brutais, períodos de enorme aquecimento e pelo menos três mudanças radicais na vegetação.
As florestas evoluíram com toda a rede de interações entre plantas, vertebrados, fungos e outros invertebrados, incluindo os insetos. Há insetos coprófagos (comem fezes), micófagos (comem cogumelos), saprófagos (comem cadáveres), polinizadores, parasitóides de outros insetos, decompositores aquáticos e terrestres, predadores de outros insetos, herbívoros (comem folhas), fitosaprófagos (comem partes mortas de plantas), minadores de troncos [se alimentam da seiva das árvores] etc. O desafio é que a biodiversidade de insetos — e seu desconhecimento — é tão grande que não conseguimos desenhar a teia completa de relações entre os insetos e suas funções dentro dos ecossistemas florestais.
Qual a principal motivação para realizar um projeto como o BioInsecta na Floresta Amazônica?
Há mais de 100 anos foi dito pelo biólogo William Beebe que a fauna de insetos na copa das árvores é como se fosse um outro continente. Tem muitas espécies que estão na copa das árvores e que não estão no solo, só que nunca foram estudadas devido à falta de métodos para coletar nesse ambiente. Esse é um dos motivos do projeto ser tão importante, porque ele permitirá estudar as Amazônias acima do solo.

O projeto conta com especialistas de diversas ordens e famílias, e o DNA de centenas de milhares de exemplares de insetos será sequenciado para uma amostragem significativa. Na imagem, cupins, ordem Blattodea – Foto: Tiago Carrijo/ @bio_insecta
Os estudos de fauna de insetos eram feitos por meio de projetos individuais, utilizando apenas a identificação por taxonomistas. Isso faz com que o processo de descoberta da biodiversidade não descrita ou desconhecida seja muito lento. O projeto BioInsecta é realizado em parceria com o INCT-BioDossel do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) apoiado pelo CNPq, integrando braços diferentes [taxonomia, sequenciamento de DNA, ecologia, educação e divulgação científica] que trabalham juntos para o conhecimento dessa fauna gigantesca.
Enquanto as equipes de sequenciamento de DNA aceleram o processo de delimitação de espécies, a enorme rede de cientistas da biodiversidade dão significado às sequências geradas, com o reconhecimento dos grupos [ordens e famílias de insetos] aos quais as espécies pertencem, e com o levantamento da sua biologia e o reconhecimento de quais delas são novas. Todas as equipes juntas preparam os trabalhos sobre os padrões gerais de distribuição vertical desta fauna, a complexidade da floresta e o número de espécies existentes em dada área da floresta.
Ao invés de caminharmos por pequenos passos na compreensão da biodiversidade de insetos, damos passos do tamanho da escala do projeto [com a estimativa de mais de 5 milhões de espécimes coletados, e cerca de 500 mil exemplares que serão sequenciados]. Milhares de espécies vão ser descritas e a complexidade da floresta vai ser desvendada. Não há um número preciso agora, mas a proporção geral de espécies ainda desconhecidas em relação às espécies conhecidas pode ser de 90% a 98% da fauna de insetos da Amazônia.

Dalton Amorim e José Albertino Rafael coordenam, respectivamente, os projetos BioInsecta e o Biodossel, parceiros na grande empreitada de desvendar a biodiversidade amazônica - Foto Cecília Bastos/ USP Imagens
Quais as principais perguntas que o projeto busca responder?
Queremos responder quantas espécies de insetos são impactadas quando uma área de floresta é removida, ou seja, quantas espécies de insetos há em uma área qualquer da Floresta Amazônica de cerca de 10 mil hectares, aproximadamente 10 mil campos de futebol. Sabemos que são muitas milhares, mas não sabemos quantas; nem como essa fauna, com inúmeras biologias, está distribuída na estrutura vertical da floresta; e se as espécies de insetos são as mesmas, do Acre ao Maranhão e do Mato Grosso a Roraima, ou se (como ocorre para vertebrados terrestres e plantas) há “muitas Amazônias”, com uma substituição importante quando se cruzam os grande rios.
Quais inovações a pesquisa traz em relação ao que já foi feito?
Precisamos resolver diversas limitações que impediram as respostas na literatura científica até agora. Há necessidade de acesso ao dossel (a copa das árvores) para coletas eficientes e regulares; de sequenciar o DNA de centenas de milhares de exemplares de insetos para conseguir uma amostragem significativa das várias ordens e famílias; e de uma rede com centenas de especialistas (entomólogos) nos mais diversos grupos — de borboletas a percevejos, de baratas a grilos, de moscas a cigarrinhas. De todas as inovações, talvez a que chama mais a atenção são as “cascatas” de armadilhas. Uma estrutura incluindo cordas, roldanas e armadilhas alinhadas verticalmente, sustentadas por galhos das árvores mais altas da floresta que crescem acima da altura média do dossel. Sem amostragem, não há conhecimento da biodiversidade, de maneira que essa solução nos permitiu ter acesso à fauna a mais de 25 metros de altura dentro da floresta. Nossas contas do Instagram (@bio_insecta e @inct_biodossel) têm mostrado o funcionamento dessas armadilhas extremamente eficientes, que estão coletando mais insetos do que as armadilhas, usadas no início de nossos estudos, que foram montadas nas plataformas de uma torre meteorológica de 40 metros de altura na Reserva ZF2 do Inpa. A cada duas semanas, as armadilhas em cascata de cinco níveis estão coletando, em média, 59 mil exemplares de insetos em cada local de estudo. São três áreas de estudo, e em cada local é utilizada uma cascata de armadilhas.
Em que consiste a taxonomia integrativa e reversa que é usada na pesquisa?
É uma metodologia que faz uso combinado de informações morfológicas e moleculares para compreender a biodiversidade. Apenas dados moleculares não são capazes de dizer, para um “continente” que teve sua fauna muito pouco sequenciada (estudada com dados de DNA), a qual espécie ou gênero e família os exemplares pertencem, e se elas são novas ou não.
Apenas dados morfológicos resultam em um processo demasiadamente lento, que não permite estudos da fauna completa. Chama-se “reversa” porque o material primeiramente é sequenciado e, depois, identificado ao nível específico, ao contrário do que se faz quando os projetos de biodiversidade focam em um ou alguns grupos presentes nas amostras.

Pesquisador usa aspirador para coleta de insetos de solo - Foto: César Favacho/ @bio_insecta
Como o conhecimento sobre a biodiversidade pelos povos originários poderá ser considerado no projeto?
Essa é outra pergunta muito central. Às vezes, falamos em “descobrir” a biodiversidade. As nações originárias têm um conhecimento enorme da biodiversidade. Elas vivem neste continente há milhares de anos, e têm um profundo conhecimento das plantas e dos animais. A ignorância, de fato, é nossa. O que fazemos é organizar nosso conhecimento “novo” de outra maneira.
No Brasil, fala-se mais de 200 idiomas, mesmo depois de cinco séculos de massacre. Em cada um há nomes para elementos da fauna, inclusive de insetos, e conhecimento detalhado da biologia. Parte desses nomes já foram apropriados pela língua portuguesa. Uruçu ou iruçu é o nome genérico para as abelhas sem ferrão maiores (como espécies de Melipona ou Schwarziana); há nomes para outras espécies de abelha, como yataí (jataí, Tetragonisca); para vespas, como cawa, que se aplicam a várias espécies, cada uma com seu próprio nome; nomes para moscas como mberu ou meru e para borboletas como panapanã.
Não há preservação da floresta sem preservação das nações originárias. E não há preservação de uma nação sem a preservação de seu idioma — o silenciamento dos povos sempre foi através do silenciamento de sua língua. Alguns destes idiomas já têm dicionários e vocabulários disponíveis, que são uma janela para o conhecimento da biodiversidade das nações que vivem, conhecem e preservam a floresta há milhares de anos.
Um estudo que coordenou revelou que mais de 60% da biodiversidade de insetos na Amazônia se encontra acima do solo. Isto significa que as áreas já degradadas podem ter eliminado mais de 50% dos insetos da floresta. Quais as implicações disso para a conservação e restauração?
Há perguntas muito complexas que são resultado do projeto e que, de fato, estão além do que é nossa especialidade; vamos precisar trabalhar com especialistas de outras áreas. Os dados de biodiversidade e estrutura vertical da fauna de insetos vai alimentar estudos de ecologia da floresta por muitos anos — feito por ecólogos. Esses dados também vão ser usados por engenheiros florestais e cientistas da conservação para decisões na proteção da floresta. Se mais da metade da biodiversidade da floresta não está próxima do solo, como isso impacta as estratégias de silvicultura, extrativismo sustentável, demarcação de território dos povos originários, implantação de sistemas agroflorestais? Os dados gerados no projeto ajudarão a delinear novas soluções. Mas os próprios estudos de biodiversidade devem ter seus protocolos refeitos, em função de novas soluções para coleta no dossel e do uso da biologia molecular para estudos de biodiversidade de grande escala.
(Entrevista editada para melhor compreensão)